“O livro Contos para crianças, publicado no Brasil em 1912 e na Inglaterra em 1937, contém uma série de histórias cujo tema central é muitas vezes o mesmo: como uma pessoa negra pode tornar-se branca. Esse é, também, o núcleo narrativo do conto ‘A princesa negrina’. Na história – que parece um misto de ‘Bela Adormecida’, ‘A Bela e a Fera’ e ‘Branca de Neve’, tudo isso aliado a narrativas bíblicas nos trópicos -, um bondoso casal real lamenta-se de sua má sorte: depois de muitos anos de matrimônio, Suas Majestades ainda não haviam sido presenteadas com a vinda de um herdeiro. No entanto, como recompensa por suas boas ações – afinal, nos contos de fadas os reis e cônjuges legítimos são sempre generosos – , o casal tem a oportunidade de fazer um último pedido à fada madrinha. E é a rainha que, comovida, exclama: ‘Oh! Como eu gostaria de ter uma filha, mesmo que fosse escura como a noite que reina lá fora’. O pedido continha uma metáfora, mas foi atendido de forma literal, pois nasceu uma criança ‘preta como o carvão’. E a figura do bebê escuro causou tal ‘comoção’ em todo o reino que a fada não teve outro remédio senão alterar sua primeira dádiva: não podendo transformar ‘a cor preta da mimosa cor de leite’, prometeu que, se a menina permanecesse no castelo até seu aniversário de dezesseis anos, teria sua cor subitamente transformada ‘na cor branca que seus pais tanto almejavam’. Contudo, se desobedecessem à ordem, a profecia não se realizaria e o futuro dela ‘não seria negro só na cor’. Dessa maneira, Rosa Negra cresceu sendo descrita pelos poucos serviçais que com ela conviviam como ‘terrivelmente preta’, mas, ‘a despeito dessa falta, imensamente bela’. Um dia, porém, a pequena princesa negra, isolada em seu palácio, foi tentada por uma serpente, que a convidou a sair pelo mundo. Inocente, e desconhecendo a promessa de seus pais, Rosa Negra deixou o palácio e imediatamente conheceu o horror e a traição, conforme previra sua madrinha. Em meio ao desespero, e tentando salvar-se do desamparo, concordou, por fim, em se casar com ‘o animal mais asqueroso que existe sobre a Terra’ – ‘o odioso Urubucaru’. Após a cerimônia de casamento, já na noite de núpcias, a pobre princesa preta não conseguia conter o choro: não por causa da feição deformada de seu marido, e sim porque nunca mais seria branca. ‘Eu agora perdi todas as esperanças de me tornar branca’, lamentava-se nossa heroína diante de não menos desafortunado esposo. Nesse momento, algo surpreendente aconteceu: ‘Rosa Negra viu seus braços envolverem o mais belo e nobre jovem homem que já se pôde imaginar, e Urubucaru, agora Príncipe Diamante, tinha os meigos olhos fixos sobre a mais alva princesa que jamais se vira’. Final da história: belo e branco, o casal conheceu para sempre ‘a real felicidade’.”
Trecho integralmente retirado do livro “Nem Preto Nem Branco, muito pelo contrário” da antropóloga Lilia Moritz Schwarcz.