Salve, salve!
Para o auxílio de algumas pessoas, farei um simples gabarito comentado sobre as questões de Sociologia presentes no ENEM de 2020.
Antes de analisar as questões, destaco aqui a abstenção de mais de 51% dos candidatos, número recorde e óbvio diante do caos que vivemos no mundo e especialmente, no Brasil governado por um neandertal. Milhões de pessoas prejudicadas pelo egoísmo dos donos do poder. Quantos estudantes empenhados, dedicados e com projetos para a vida deixaram de fazer o exame simplesmente por medo?
Temos o número exato para essa resposta: 2.842.332 de pessoas.
Que o futuro cobre os agentes da morte que comandam o INEP e o MEC!
Diante de um governo negacionista e inimigo da ciência, profissionais da educação (sérios) também ficaram apreensivos com o conteúdo da prova de humanas. Pode-se esperar tudo de uma administração que nega a ciência. Vi colegas cogitando sobre questões de criacionismo no ENEM! As futuras gerações questionarão como chegamos a esse ponto em pleno século XXI.
Pois bem, a prova do ENEM segue (ainda) a lei e a Base Nacional Comum Curricular que (ainda) deve ser respeitada. Para um governo que está destruindo todas as instituições científicas do país e que sequer respeita a Constituição, infringir a BNCC é um passo que tem exigido mais esforços (sem sucesso) dos olavetes.
Ontem (18/01), bolsonero resolveu comentar sobre a prova do ENEM. De acordo com o limítrofe que ocupa o cargo máximo do Executivo, o exame é formado por um banco de questões que não pertencem ao seu governo (Ufa!!!!), e que para ele são questões “ridículas”, como a questão 10 da prova branca, que compara os salários de Marta e Neymar. Em seu Instagram, A Rainha Marta rebateu o vômito do presidente com a seguinte sentença:
“Uns serão lembrados como os melhores da história, já outros…”
E se o asno considera uma questão ridícula sobre desigualdade de gênero, é justamente por ela que começo esse gabarito comentado. Lembro antes que seguirei a numeração da prova branca e com o foco nas questões mais específicas de conteúdos que trabalho em sala de aula. A prova está mais interdisciplinar a cada ano que passa, deixando-a mais complexa e exigindo cada vez mais o domínio dos conteúdos das aulas do soninho: Sociologia e Filosofia.
Questão 10 (caderno branco):
Temos a Antropologia pronta e disposta a dissecar essa complexidade ao redor do conceito de Cultura. É um conteúdo frequente no ENEM que, ao focar na desigualdade de gênero como cultura, nos leva a compreender esse tipo de desigualdade como “hábito e tradição” de determinadas sociedades. Se tratando de Brasil, enraizado pela desigualdade de gênero, formou-se um povo que naturaliza diferentes desigualdades, fortalecendo a estrutura patriarcal que permeia todas as relações sociais, da família ao jogo de futebol.
O futebol é sinônimo de cultura no Brasil e o século XX confirmou essa relação. Nas relações com o esporte, o lado emocional de um povo, o microcosmos que um estádio de futebol reproduz, a criança marginalizada que respira o futebol como uma oportunidade de vida, e é claro, as relações de poder da arquibancada aos diretores de clubes. Se as instituições de Poder no Brasil são corruptas, corruptoras e corrompidas, a Confederação Brasileira de Futebol (vulga CBF) não seria diferente. Enquanto o gado se apropriou toscamente da camiseta da CBF como um símbolo patriótico contra a corrupção, a própria CBF tem quatro ex-presidentes ora presos, ora investigados, ora fugitivos, ora procurados por FBI, Interpol e outros órgãos de investigação ao redor do mundo. São os casos do finado João Havelange, Ricardo Teixeira, José Maria Marin e Marco Polo Del Nero (que como lembra Juca Kfouri, o Marco Polo que não viaja pois, se pisar em qualquer aeroporto, é preso). O jogador Neymar (ótimo jogador e pessoa de caráter duvidoso), citado na questão, é investigado no Brasil e nos países onde jogou (Espanha e França) por sonegação de impostos. Se ele será punido na Espanha ou França não sabemos, a única certeza que temos é que no Brasil, não será.
A questão do ENEM tem o foco no mundo do trabalho e na disparidade entre um homem e uma mulher, que exercendo as mesmas funções no mundo do trabalho, são remunerados de formas completamente desiguais. Alguns dados levantados pelo Quero Bolsa para a Agência Brasil com base no Cadastro Geral de Empregados e Desempregados demonstram que após sete anos de queda, entre 2018 e 2019 houve um aumento de 9,2% de desigualdade salarial entre homens e mulheres.
Portanto, se para o presidente do brazéu essa questão é ridícula, saibam vocês que ela é uma realidade brasileira e que atinge o artigo 7º da Constituição e seu inciso XXX:
XXX – proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil;
Enfim, resposta correta: letra B!
A questão 17 (da prova branca) também abraçou a temática da desigualdade de gênero:
Nesta, a proposta do texto é expor a importância de estratégias de inclusão em práticas simples no dia a dia de consumidores que servem para a popularização da igualdade de gênero ao redor do mundo, como é o exemplo do futebol feminino e o mercado desse esporte nos Estados Unidos. A resposta da letra A sintetiza o objetivo da reflexão desta questão.
Vamos agora para a questão 18 (da prova branca).
Essa questão pode ser relacionada a obra do sociólogo Oracy Nogueira, geralmente trabalhado no 1º ano do Ensino Médio nos estudos sobre Sociologia Brasileira. Em “Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil“, artigo publicado na década de 50, Nogueira desenvolve uma análise comparativa entre o racismo nos Estados Unidos e no Brasil.
De acordo com Oracy Nogueira, enquanto no Brasil há o “preconceito de marca”, que se refere a cor da pele e que pode ser “apagado” de acordo com status social do indivíduo, nos Estados Unidos o “preconceito é de origem”, descrito pelo autor “quando basta a suposição de que o indivíduo descende de certo grupo étnico para que sofra as conseqüências do preconceito, diz-se que é de origem”.
Para além da obra de Oracy Nogueira, a questão do ENEM é direta sobre comportamento de pré-ideias e pré-conceitos presentes em uma sociedade estruturada no racismo. Resposta correta: Letra D.
Antes de seguir com a correção, destaco a questão 26 (da prova branca) que esculachou a onda “coaching” e que proporcionou boas risadas a todos os seres racionais que resolveram a prova e que puderam aliviar os ânimos nervosos com o texto sobre os “empreendedores de palco”. Foi uma questão sobre padrões de linguagem, e que portanto, não tenho autonomia nenhuma para comentá-la, portanto, já posso ser coach de padrões de linguagem. Zoeira a parte, que é legal ver a moda “coaching” sendo chacota em uma prova do ENEM, é.
Passando por questões de gramática, geografia e literatura, chegamos na questão 47 (da prova branca):
Uma questão desse tipo tem toda a minha atenção, ainda mais com o termo “abrasileiramento”. Tenho um forte ranço com narrativas que tentam branquear ou “europeizar” algumas práticas daqui. Por exemplo, a Umbanda.
Certo dia, o professor Luiz Antonio Simas fez eu sentir vergonha alheia pelo academicismo (o qual já fui praticante fervoroso) que vive de pegar conceitos de autores franceses, alemães, ingleses e forçam uma “””suposta””” leitura sobre práticas culturais brasileiras.
A reflexão é a seguinte:
O jovem acadêmico brazilayro vai atrás de Michel Foucault (com todo respeito ao autor que tem sua importância, estou inventando um exemplo), lê dez páginas de três diferentes obras do autor para compreender Exu na gira de sexta-feira no terreiro da Mãe Maria de Ogum.
Manja? O conceito de Exu já está pronto e “afirmado” no terreiro da Mãe Maria de Ogum e não precisa da leitura de um intelectual do College de France. O professor Simas bem lembra que algumas práticas religiosas no Brasil são entendidas pelo senso comum como práticas “embranquecidas”. Na prática, é muito pelo contrário: há uma africanização do cristianismo, por exemplo. Em inúmeras práticas, a cultura branca se sente dominante. No carnaval, isso é mais comum do que se imagina. Enquanto a escola de samba está cantando um enredo qualquer, e a globo transmitindo para todo o Brasil, o tambor tá saudando algum Orixá, criando uma terceirização do espaço. Ou seja, resposta correta é a letra E!
Uma bela demonstração que o desgoverno ainda não botou as mãos 100% na prova do ENEM é que caiu uma questão sobre o gigante Chico Mendes! Na prova branca, foi a questão 48. Vejam aí:
Não tem como conversarmos sobre as características dos novos movimentos sociais e as mobilizações através das redes sociais no século XXI sem analisarmos os movimentos rurais e os movimentos ambientalistas. Porém, no final da década de 1980, as mobilizações pela reforma agrária criaram inimigos na elite econômica, que logo, criaram narrativas opostas que formaram posteriormente a “Bancada do Boi” no legislativo. Da formação da UDR e Ronaldo Caiado aos grupos de WhatsApp em 2021, o discurso opressor faz ainda que o senso comum estigmatize os movimentos rurais e ambientalistas. Fazendeiros assassinos e gananciosos herdeiros de terras, também são herdeiros da ganância das elites econômicas pré-abolição. Os discursos são os mesmos do final do século XIX. Não só os discursos, também os sobrenomes. Viva Chico Mendes!
Marquem aí, letra C de CHICO MENDES!
Se você está sentindo falta de uma questão teórica sobre direitos humanos, a questão 54 (da prova branca) está aí para suprir seus anseios:
O ano é 1789 e geral tá de saco cheio de monarquia e seus privilégios. Questões sobre a Revolução Francesa e a formação da modernidade sempre são legítimas aulas de atualidades. As camadas sociais oprimidas sempre buscando a mudança. Na França, os comerciantes representam os oprimidos com anseios de transformação social, política e econômica. Pautas inspiradas em ideais iluministas de igualdade, ou como o chato que fez a questão chamou de “paridade”. Pense que se um padre cometesse um crime, seria julgado de uma forma diferente de um nobre que cometesse o mesmo crime, que respectivamente, seria julgado de forma diferente de um sujeito do “povão” que cometesse um crime diferente. Se hoje ainda acontecem esses tipos de desigualdades jurídicas, os motivos que não são formais. Busca por igualdade jurídica é a letra D.
Deixo a questão 55 (da prova branca) sobre a Grécia para os maconheiros da Filosofia! <3
Agora vamos resolver a questão 58 (da prova branca), uma questão que aborda diretamente um autor clássico, Max Weber.
A questão debate sobre “A Ética Protestante e o ‘Espírito’ do Capitalismo” e a nova compreensão de trabalho formada com a modernidade. Para a resolução do tema, é importante lembrar das visões sobre trabalho braçal na formação do ocidente. Para os gregos, por exemplo, o trabalho e esforço físico eram atentados contra a nobreza. Platão ressaltou essa visão em muitos textos, inclusive n’A República. Já para os romanos, Tripallium era um instrumento de tortura. Durante a Idade Média, uns oravam (Clero), outros “protegiam” (Nobreza) e outros trabalhavam (Plebe).
Após a Reforma Protestante e a influência do Calvinismo em culturas que se tornariam referências na formação do sistema capitalista, o trabalho passou a ser compreendido como o sinônimo da predestinação divina, definida pelos protestantes ascéticos como uma fuga das “coisas mundanas”, ou seja, fuga do pecado. Partindo desse princípio, Weber nos faz entender através da relação capitalista de que “Time is Money” e a percepção de acúmulo de bens estão diretamente ligadas ao discurso protestante calvinista de salvação pelo trabalho. Portanto, resposta correta é a letra B.
Ah! Vocês repararam que a prova teve um questão excelente e ácida com relação ao neoliberalismo? Ei, filhote da Margaret Tatcher, pq choras? Questão 59 (da prova branca).
[LEIA O TEXTO EM VOZ ALTA]
Com Collor, Itamar e FHC, o Brasil abriu as portas para um planejamento neoliberal que endureceu ainda mais as desigualdades e mazelas presentes na sociedade brasileira. Não, não é o professor de humanas comuniiiiiiiiista doutrinador que está analisando o cenário político dos anos 1990. É a questão do ENEM, filhão! Com estatais vendidas a preço de banana e o plano real tentando maquiar erros na macroeconomia, a letra E sintetiza os fracassos lembrados por Bernardo Sorj.
Agora, mais uma questão sobre o mundo do trabalho, tão interdisciplinar quanto as demais. Tenho certeza que muitos professores de história e geografia também resolverão essa questão. Em Sociologia, não podemos deixar de comentar, afinal, é um conteúdo trabalhado no 2º e 3º ano do Ensino Médio. Segue aí procêis a questão 66 (da prova branca):
A questão está tratando de pós-fordismo. As crises recorrentes do sistema capitalista e seus repetidos erros (muitos por culpa do próprio fordismo, como a padronização e o acúmulo de estoque) serviram de lição para o modelo asiático toyotista que resolveu flexibilizar a produção e relacionar seu ritmo ao “Just in Time”, caracterizando esse sistema com a produção sob demanda. Portanto, a resposta correta é a letra C!
A questão 70 (da prova branca) trata do “contratualismo moderno”:
Aqui podemos lembrar dos clássicos Hobbes, Locke, Rousseau. Mas, para facilitar a compreensão do texto citado na questão, podemos lembrar do Fato Social de Durkheim.
De acordo com o o autor, todo Fato Social é formado por três características: Externalidade, Generalidade e Coercitividade. A “cooperação social”, citada no texto, guiada por regras e procedimentos é o que Durkheim chamou de Consciência Coletiva. Vale ressaltar que, independentemente do grupo social (Externo e Geral) que você estiver interagindo, se você não participar das regras, será isolado ou punido (Coerção). A resposta correta da questão é a letra E.
Enfim, chegamos a terceira questão na prova sobre desigualdade de gênero no mundo do trabalho. Questão 74 (na prova branca):
A questão foca na ação da segunda onda do movimento feminista (1960-1970) e na inserção das mulheres no mercado de trabalho em espaços que ainda não tinham a mínima possibilidade de interação. Com o aumento dessa presença, áreas de trabalho menos valorizadas e mais precárias tiveram uma presença maior da mulher, considerada mão-de-obra mais barata, reforçando a configuração patriarcal do ocidente. Resposta correta: letra B.
Após a questão do Chico Mendes, temos outra mais direta sobre os movimentos sociais rurais. Na prova branca, questão 75:
Além da importância do assunto, cabe o destaque da relação contrária ao senso comum e seus preconceitos construídos nas últimas décadas contra os movimentos rurais. A ideologia dominante que agride as necessidades dos trabalhadores rurais faz com uma classe média urbana, extremamente frustrada por nunca se tornar elite, absorva discursos de ódio contrários aos direitos dessas populações rurais que buscam seus direitos.
Direitos Sociais que são expressos no Artigo 5º da Constituição Federal, defendidos pelos movimentos sociais rurais que terras improdutivas sejam somadas a um projeto de Reforma Agrária. Resposta correta: letra C.
E por fim, nossa última questão é a questão 87 (da prova branca):
Mais uma questão sobre Direitos Humanos e com o tempero de ENEM. Muitos podem ter lido a questão e levado em consideração a Declaração de Salamanca e talvez ter questionado se já tinha ouvido falar no assunto. Bastava ler a questão para entender que tratava da educação como direito social. Para melhor resolução, vale o destaque do Artigo 6º da Constituição Federal:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Resposta correta: letra C. E que a “pluralidade de sujeitos” enfim se torne realidade em um país cada vez mais excludente e desigual.
Bons estudos!